segunda-feira, 2 de novembro de 2009

terça-feira, 26 de maio de 2009

A transformação de Gregor Samsa

27/08/08


Às vezes, certos “sonhos inquietantes” mudam nossa forma de ver as coisas. Essas “transformações”, causadas por longos descansos, geralmente em nossas camas ou sofás, podem alterar drasticamente nossas relações com os outros e com o mundo a ponto de darmos por si como “um gigantesco inseto”. Esta forma – grotesca em descrição – não nos causa espanto enquanto estamos sozinhos, pois, de certa maneira, ainda somos nós mesmos. Porém, os outros, que construíram uma determinada imagem concreta e dura do que somos, ficam deveras chocados com essa repentina e, a nosso ver, sensata mudança.

Dos textos iniciais de Kafka, a novela A metamorfose, escrita em 1912 e publicada três anos depois, é o momento de transição das histórias curtas para os romances mais maduros. Mas é também um último suspiro de realismo fantástico europeu do século XIX . Ou uma experimentação da semente do realismo mágico de Gógol. O que é importante ressaltar é que a simulação pretendida por Kafka não poderia ser feita de outro jeito.

A transformação do homem em inseto é o acontecimento-motor que tira Gregor de sua rotina. Simbolicamente a metamorfose seria pensamentos subversivos que se tornaram realidade. Uma vontade reincidente de acabar com a angustiante vida de trabalhar para pagar as dívidas da família. Porém, a transformação não o pega de surpresa. Ser um inseto não muda nada para Gregor: a chuva o deixa melancólico, o atraso ao trabalho ainda o preocupa, a primeira coisa que olha, quando busca ao redor pelo “que aconteceu”, é uma foto recortada de revista em cima de mesa.

Diferentemente da personagem de O castelo, que vai se enleando na vida dos habitantes de um condado com certa autonomia, que parece poder abandonar de uma hora para outra toda a confusão, o inseto gigante não pode voltar atrás. Todos nós nascemos num meio geográfico, cultural e econômico e devemos nos adaptar e ceder para conseguir viver. Gregor, porém, tornou-se um estrangeiro nesse meio. Suas tentativas de modificá-lo, como rearranjar constantemente o quarto, seu gueto, até torná-lo vazio, são difíceis e com as pessoas de que depende não consegue se comunicar.

Com esta novela, Kafka experimenta na ficção as conseqüências da decisão extrema de cortar relações com a sociedade. Todos que já perceberam que “isto de levantar cedo estupidifica uma pessoa” cogitaram essa tentativa. E realmente não passa de uma tentativa para Kafka, pois os problemas que a personagem enfrenta não a deixam em paz. Somente a morte poderia trazer um novo estado de equilíbrio e felicidade para os que se relacionavam com o estorvo.

“Há oito dias que está em casa e não houve uma única noite que não ficasse em casa” – atesta o pai de Gregor. Um trabalho assim “tão cansativo” gera insatisfação e oito dias foram suficientes para tomar a decisão. Por mais que “não se sentisse particularmente fresco e ativo” quando acordou, Gregor sabia que quando fosse se desculpar no trabalho “iria ter com o patrão e dir-lhe-ia exatamente o que pensava”.

Entretanto, coragem não tinha, a família dependia dele. Mas, de súbito, sua vontade foi desmascarada e mesmo querendo que as “ilusões” daquela manhã desaparecessem e sabendo que o “melhor seria levantar-se”, a postura premeditada foi transubstanciada: a decisão grotesca estava na sua cara, fora descoberto e teria que arcar com as conseqüências.

Em A janela para a rua, conto de apenas um parágrafo, Kafka mostra a necessidade que mesmo um homem solitário tem de “ver um braço ao qual poderia aferrar-se”. Naquela estranha manhã, também Gregor buscou na janela para a rua um apoio, mas “pouco alívio e coragem lhe trazia”. Tal foi seu pensamento – “Sete horas, já, e um nevoeiro tão denso.” O mundo se fechava para ele.

Passado um tempo, depois da chegada do chefe do escritório a sua casa, a mãe suspeitou que o filho estava doente e manda chamarem o médico. Por sua vez, o pai pediu por um serralheiro para arrombar a porta. A estas medidas positivas, Gregor “sentia-se uma vez mais impelido para o círculo humano”. “Se ficassem horrorizados, a responsabilidade já não era dele e podia ficar quieto.” Depois do seu esforço para abrir a porta, pelo primeiro contato após a transformação, as coisas não se passaram tão simplesmente como imaginava. Ainda não tendo terminado o horror causado pela sua aparição, Gregor foi enxotado de volta para o quarto.

A história então avança esclarecendo a situação material da família e mostrando as tentativas de inclusão de Gregor. A maçã arremessada pelo pai aparece como castigo e aviso e, com ela incrustada no dorso, está preparada a única resolução possível, depois de alguns meses de desentendimentos e “hospitalidade”.

Por fim, a irmã, que se esforçou em tentar compreender-lhe, proclama a sentença – “Não pronunciarei o nome do meu irmão na presença desta criatura, e, portanto, só digo isto: temos que ver-nos livres dela.” Não é possível mais a convivência. Quando a família consegue estabelecer relações normais com o mundo, o inseto gigante, seduzido pela música do violino, interfere novamente e estraga o andamento das novas atividades.

Gregor acaba trancado em seu quarto vazio para morrer. Para a família, era como guardar a idéia de filho-irmão em algum canto da cabeça esperando esquecê-la. Poucas horas após a morte do inseto, saíam todos para passear. Com o espírito livre, fizeram novos planos e repensaram a vida. Podiam, novamente, normalmente, ser felizes.

A simulação de uma pessoa se desvencilhar da sociedade, empreendida por Kafka com A metamorfose, resulta impossível para a sobrevivência. Os acontecimentos nos surpreendem e não temos controle sobre o que nos cerca. Essa tentativa não foi repetida por Kafka em nenhuma de suas obras posteriores. Pelo contrário, as personagens caminham com dificuldade pelas histórias cheias de absurdos, mas nunca se voltam contra a máquina, buscam sempre de dentro uma solução.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Olha a bela flor dobrar serena a
antiga avenida central;
tem pernas, sim, e desliza pelo lamaçal de macadame.
tempos idos, o cimento fez-se o chão de nossos pés (não assim, bem,... diferente);
a bela flor, na lembrança é mais bela.

vê a flor murcha, a regozijar-se com as gotas do orvalho matinal,
de todos os dias (quase).

Sê a bela flor a passear pelos desníveis do meu peito castigado,
E quem sabe não serei mais uma vez um corpo entorpecido,

Vê a flor, que aos olhos é menos bela que na lembrança,
A assobiar notas tal qual um instrumento musical;
Numa noite de luar, ao fundo do meu quintal,
Na plena imensidão das dores cotidianas.

Querida flor.

domingo, 10 de maio de 2009

O último show de rock. Quem chora?

por Paulo Leminski


Choram, naturalmente, quem assistiu a “The Last Waltz” do Scorsese, um documentário da despedida/volta olímpica do conjunto “The Band”, a célebre cozinha do Bob Dylan.

Chora quem tinha 20 anos em 1968 e chegou a sonhar “the dream”.

Chora quem participou/assistiu da Grande Reforma de Costumes do Ocidente que foi revolução, como alguns diziam, pois não alterou as relações de poder nem as da propriedade, mas subverteu tudo o mais: sexo casmento, ética, religião, música, aparência, vestuário, objetivos de vida.

Choram os que vêem que tudo no fundo continua igual ou pior.

Choram os que acreditaram, mesmo por um segundo, na miragem de uma sociedade alternativa e numa contracultura como terceiro caminho e viram o Stablishment transfrmar todas as ilusões em mercadoria, inclusive este filme.

Chora quem imaginou que o rock (trilha sonora da contracultura) era eterno como sua própria juventude.

Chora quem foi para as drogas que nem Jimmy Hendrix.

Chora quem foi para a Índia com os Beatles.

Choram os que viajavam com Janis Joplin enquanto o maior país da Terra trucida em massa o povo vietnamita e sacrifica a fina flor da sua juventude no gangsterismo com dimensões planetárias que foi a guerra no sudeste asiático.

Choram os que acreditavam no lado bom do progresso, do Stablishment, do otimismo.

Choram os que tomaram banho pelados durante os três dias de música e compreensão em Woodstock.

Choram mais os que não puderam estar em Woodstock.

Choram os que no Brasil viveram em país estrangeiro.

Choram os que cultuaram uma deusa benigna chamada Estrada e descobriram a natureza que duzentos anos de ordem burguesa tinham jogado no fundo do quintal.

Choram todos os que na esquizofrenia do lar se preparam para o dia de amanha que a ideologia Hippie tinha abolido.

Choram todos os que aceitaram as conseqüências do “american way of life”, sem ter seus antecedentes.

Chora quem vê, de repente, surgir na tela como num transe hipnótico, nada mais nada menos que Bob Dylan himself, o mesmo Bob Dylan que levou a mais alta poesia aos juke-boxes dos bares mais vagabundos das estradas dos Estados Unidos, na música folk e blues das suas raízes populares do interior, o poeta que John Lennon disse que lhe tinha mostrado que a “letra não precisa ser só papo furado”, aquele de quem Jimmy Hendrix disse que não podia acreditar, quando o ouviu, que as palavras que estava escutando diziam aquilo mesmo, tão alta era a poesia, o mesmo Dylan, fugido de casa, perdido em Nova York, um pouco antes da explosão dos anos 60 que ele ajudou a explodir, o mesmo Dylan que pôs política na letra de música e deflagrou o protesto, o mesmo Dylan que o sistema, que ele tanto combateu e denunciou, “George Jackson”, “Masters of War”, “A Hard Rain is Gonna Fall”, pune agora transformando-o num multimilionário aristocrata da sociedade americana, Dylan, em pessoa.

Choram os branco-negros, os brancos-índio, os branco-ciganos, os homens-mulher, os adultos-criança.

Choram os que sabem que os sentidos são a crítica da razão e que há muito mais sabedoria no prazer do que imaginam os catões(?) da vida.

Choram todos os que viveram uma vida que não era sua.

Choram todos os que acham que os anos 60 mereciam estátua em praça pública por relevantes serviços prestados à espécie humana.

Choram todos os remanescentes de uma primavera que não funcionou.

Choram todos os que, em algum lugar da Califórnia, converteram-se em uma seita oriental, matricularam-se numa academia de artes marciais japonesas ou viram, pela primeira vez, uma revista escandinava de pornografia, estuprando dois milênios de sexo recatado e elidido.

Choram todos os que, por vergonha do Brasil, da sua música caipira com os dentes cariados, da sua língua que é o desterro ocidental do pensamento, das suas afinidades com a África, com a América Latina, com o operário, com a mulher, com o negro e com o poeta, com vergonha, viveram longe daqui, aqui mesmo.

Chora toda esta geração que não conseguiu ser na medida de suas fantasias.

Choram todos os que tiveram o sistema nervoso reprogramado pela eletricidade, os “filhos da flor”, o “gentle people”, os que fazem a mais silenciosa das revoluções, essa mudança para a vida mais sensorial e menos contável, mais promíscua e menos hierárquica, mais anárquica e menos neurótica.

Choram todos os que dançam.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Cuidado com o dado

Há que se ter força para transformar o dado em novidade,
E coragem para abrir mão do dado, quando este lhe favorece;
O dado pelo dado é, sobretudo, uma prisão,
E como uma boa prisão tende a domesticar o fardo,
quando este não é dado.

O dado pode ser pago: em prestações, uma forma de escravizar.
No tipo: eu fico famoso, e você que foi atrás do dado, em parte por que estava dado,
Acabou se transformando num saco, domesticado, e com espírito opaco.

Libertai-vos do dado, e buscai-vos, no intangível, o não dado. Tenha a certeza de não ser dado, e de também não ter dado: que tal uma transformação? Uma revolução! Eis o combustível do espírito livre!




Florianópolis, 13/04/09.

domingo, 3 de maio de 2009


futuro lambe pós-moderno

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Song to Bob

Hey, hey Bob, eu lhe escrevo esta crônica, sobre um mundo cômico, doente, faminto e cansativo. Mundo moribundo, onde nascer é um fardo pesado.


Ouço muitas pessoas falando, mas ninguém ouvindo. Ouço o lamento de uma pessoa faminta e ouço a risada de muitas outras. Ouço as palavras do poeta que jaz morto na sarjeta. Heard the sound of a clown who cried in the alley.


I dreamed a dream que me deixou muito triste, era a respeito dos poucos amigos que tive. Lembrei-me das muitas tardes que passamos juntos e dos risos e cantorias até o amanhecer. Nunca pensamos que poderíamos envelhecer tanto, esperávamos que pudéssemos nos divertir para sempre, mas as chances para isso acontecer era uma em um milhão. Desejei muitas vezes em vão que voltássemos a sentar-nos juntos novamente. Pagaria a quantia que fosse, e faria isso alegremente, se nossas vidas pudessem voltar a ser como era.


Agora são meia noite e dez, acordarei às seis, mas não estou com sono e não tenho lugar para ir, então toque uma música para mim senhor Homem-Tamborim.


Me perguntam por que bebo o tempo todo: isso acalma minha mente, canto e imagino dias melhores. Assim não preciso de um carro esportivo, posso caminhar a qualquer hora pela vizinhança. Infelizmente, hoje em dia você sai por ai, dá ‘oi’ para um estranho e ele se afasta com medo, achando que é um assalto ou um comunista. Mas, de fato, se eles pudessem ler meus pensamentos, eu seria condenado à guilhotina. But it's alright, Ma, it's life, and life only.


Mas não sejamos tão melancólicos, por favor, Let me forget about today until tomorrow. Bob, se os Beatles aprenderam muito com você, deverias também ouvir um pouco dos que os meninos têm a dizer. There's nothing you can do that can't be done, nothing you can sing that can't be sung… Você acredita em amor a primeira vista? Estou certo que acontece o tempo todo.


Bob, deixe-me lhe contar, conhecia uma garota, mas ela tem tudo que precisa, é uma artista e nem olha para trás. Eu disse a ela: honey, just allow me one more chance to get along with you, de fazer qualquer coisa boba, num lugar bobo. Mas Bob, I ain' a-got Corrina, life don't mean a thing.


Certa vez lhe pedi um beijo, mas a resposta, meu amigo Bob, is blowing in the wind...

quarta-feira, 1 de abril de 2009

A eternidade e o instante

Certa vez, um amigo físico sugeriu-me pegar o átomo de césio 133 e olhar atentamente para um de seus níveis energéticos hiperfinos - tinha que ser em estado fundamental. Então, eu deveria esperar que houvesse uma mudança de nível com emissão de radiação. Isso ocorreria entre um tique e um taque, ele me avisou. Mas não seria como um hífen e sim como 9 bilhões de períodos de onda radioativa.

Em outras palavras, ele queria me mostrar que um segundo é muita coisa.

Mas nem sempre o instante foi um tempo com tanto significado. Durante várias centenas de anos, desde que o homem raciocinou a passagem do tempo através da linguagem, a morte era o que dava significado à vida. O devir era um projeto a longuíssimo prazo, pois tudo o que fosse feito teria que ser feito enquanto o sangue pulsasse nas veias. Os atos possuíam conseqüências e o julgamento era certo: para sempre no inferno, no limbo ou no paraíso. Depois desse curto período que é a vida, nada mais poderia ser mudado. Assim, Deus e eternidade se confundiam, dando ao cotidiano trabalho para o além.

A morte, longe de ser um ponto em algum lugar divinamente escolhido na linha temporal da vida das almas, tornou-se, no século XVIII, uma questão de probabilidade. Dependendo de suas condições materiais e psicológicas, uma pessoa teria tantos porcento de chance de viver tantos anos, com incerteza de mais ou menos alguns meses. Somado a isso, a eternidade, uma categoria infinita, tão certa quanto indecifrável, perdeu lugar para o absoluto, um conceito fechado pelas inumeráveis brechas criadas pela ciência.

A rapidez com que os eventos podem ocorrer hoje tanto jogou o Criador para escanteio como evidenciou ainda mais a falta de significado da existência. O que dá na mesma. Porém, buscar nomes para as coisas é o que torna o homem um ente privilegiado. E continuamos fazendo isso, com ou sem um futuro no horizonte.

Foi desse comportamento essencial de perguntar-se sobre si mesmo e sobre as coisas que a filosofia moderna encontrou novamente a unidade: ser é tempo. E cada época nos dá modalidades de ser para representarmos durante nossa vida.

Só para citar um exemplo, na literatura as formas breves foram ganhando espaço à medida que todas as outras atividades do cotidiano aumentaram de velocidade. Ninguém mais ousaria escrever um poema homérico como Os Lusíadas; já se sabe de antemão que não haverá leitor.

Novelas, contos, crônicas, folhetins, todos esses modos de ser da literatura moderna nasceram por uma exigência da época e vingaram pois a condição material já circulava pelas ruas, ou seja, as publicações periódicas. Os jornais e as revistas encaixaram-se perfeitamente na mentalidade do consumo descartável que estava nascendo.

É fácil perceber que, no experimentalismo do século XX, as artes chegariam a um de seus limites: o colapso ou a infinitude. Música e literatura atingiram o silêncio. As artes plásticas saíram dos seus limites convencionais e caminham pelo espaço. Não há mais escolas artísticas nem critérios para a estética.

A enorme variedade de informação disponível nos empurra para aleatórias combinações de elementos anacrônicos que, por mais que não tenhamos vivido-os, desde sempre nos pertencem, pois a cada momento trocamos os seus significados.

Talvez a mais importante dessas re-significações tenha sido o instante eterno.

primeiro de abril de 2009

sexta-feira, 13 de março de 2009

- - / . / . - . / - . . / . - /

Estava num dia ruim. Era dia pré-escrita, e já conseguia sentir o começo daquele gosto amargo subindo pelo esôfago, tão cheio de calos. A cidade era um grande sovaco molhado, quente, seboso. Vi então um café ao longe, porta aberta, escuridão lá dentro. Parecia ser muito mais quente e úmido que o resto da cidade. Remetia a outras partes corporais. E foi com uma risada que coloquei o pé esquerdo (óbvio) lá dentro.

Claro que estava vazio. Vazio, com janelas fechadas em pleno verão infernal. Fiquei em dúvida se realmente estava aberto justo aquele estabelecimento, tão sem sentido. Sorri de novo, percebendo-me ali, muito mais sem nexo do que as paredes que me cercavam. Sentei, masoquista, na única mesa pela qual passavam alguns raios ferventes, pontos e traços alternados na madeira. "Se é pra cair, que seja de cabeça", dizia um amigo meu.

Não havia cardápio, nem garçons. Apenas um gordo careca que volta e meia se confundia com o balcão de madeira abaolada. Limpava levemente uma xícara rachada. "Mãos tão pesadas e parece que tá passando a mão em alguém", pensei.

Iniciou-se uma disputa silenciosa, ele e sua xícara sexual, eu e as miragens encaloradas. Onde os raios beijavam meus braços tremia, e eu derretia em código Morse. Aquela devia ser sua xícara favorita. Depois de um bom tempo de braços ardendo, desisti. O caminho mesa-balcão parecia muito menor de onde eu estava...

- Estão abertos?
- Não, tá muito quente moça.

Fui embora, saliva espessa e suor nas pálpebras. Definitivamente, um dia ruim.

domingo, 1 de março de 2009

Ela é linda

Ela é linda

Um gordo com a cabeça raspada passou lá fora. A porta à minha direita, atrás uma janela. No café o movimento é pulsante. Agora encheu, mas desde que cheguei as mesmas pessoas mantêm suas posições.

Também à direita, um cara escreve num bloquinho. Um bloquinho sendo rabiscado sempre chama atenção. O cara tenta perceber de rabo de olho se eu estou lendo o que escreve. Queria ler. Li umas poucas palavras.

Na minha frente, duas mulheres conversam. Uma mais que a outra. Se eu tentasse, acertaria um tapa na cara da mais falante. Sem me levantar. Conversa chata, o café estava quente demais para tomar.

Há também uma janela à direita, só que mais pra frente, depois da porta. Até meu olhar chegar lá fora, duas moças comem. Não ouço o que falam.

Me propus adivinhar o que conversam através do que o cara escreve. No bloquinho estava escrito: ela é linda.

Hum.

Realmente, a beleza dela já tinha me atraído. Era algo estranho. Tinha cara de periquito. Mas a beleza mesmo estava em outro lugar. Não sei.

A da frente estava de costas, mas pude perceber que descendia de orientais. A pele mais escura talvez empurrasse sua família para o sul da Ásia. O pescoço bem roliço, a bochecha bem redonda. Não vi as mãos. Como pude esquecer das mãos?

Um homem de barba entra. Senta ao balcão. De perfil, seu nariz pontudo cria logo sua beleza. Recebe o café que pediu e toma-o com rapidez. O meu ainda está quente. Fico mexendo e derrubando pelo pires. O homem de barba é bonito à sua maneira, de perfil, assim como a moça, que é linda, possui uma beleza que está em outro lugar.

As mulheres da minha frente, as únicas que consigo ouvir a conversa, falam sobre quais dias da semana uma vai estagiar, qual a outra vai. É tão interessante quanto impressionante como o que se pode fazer é logo aquilo que não nos importa.

O cara à direita olha o quanto já escreveu desde que entrou no café e hesita por um instante. Pensei que se estivesse com um bloquinho naquela hora estaria escrevendo também. Será que não teria beleza alguma como o cara que escrevia? As mulheres também não eram belas, uma nariguda e falante, outra quieta e também com traços orientais, só que mais para o norte.

Alguém estaria vendo a minha beleza? Olhei para todas as pessoas, nenhuma olhava para mim.

O homem de barba saiu.

Voltou em seguida quando as moças pediram um bolo de chocolate com sorvete em cima. E calda de chocolate mais em cima ainda. Havia encontrado duas mulheres na rua e voltou. Teve que pedir outro café.

Pela quinta vez olho todos os quadros do lugar e continuo gostando deles. O café também está bom. São fotografias. Muito boas. Preto sobre o branco com branco sobre o preto. Lembrei das minhas fotos. Vi o homem de barba de frente: não merecia um retrato.

O cara à direita merecia um retrato? De novo, não prestei atenção no detalhe. Vi sua caneta, seu bloquinho, sua letra. A cara? A mão? Cabelo encaracolado.

As moças levantaram-se e ficaram bastante tempo ao balcão antes de pagar a conta. Abri os olhos: seria notado? Procurariam por algo de belo perto da janela da esquerda?

O homem de barba esbarrou com meu olhar e logo seguiu adiante. O cara do bloquinho estava com a cabeça paralela à minha, olhando para o balcão: ela é linda...

A tailandesa me olhou. Mais rápida que o homem de barba. Mal pude ver se sua bochecha direita era simétrica com a esquerda.

Em dois segundos estavam fora do café. Dois olhares as seguiam. O cara fechou o bloquinho. Elas não olharam para trás.

- Percebi que as moças também chamaram a tua atenção.


Ele me olhou um pouco. Procurava minhas intenções. Sabia que eu havia lido seus escritos? Sem dúvida não procurava algo em mim. Nem em outro lugar.

Me levantei, paguei e saí.

Sozinho o mundo público se torna muito privado.

Caminhando no início da noite, me dei conta que não havia sido bonito para nenhuma das quatorze pessoas daquele minúsculo café.


1º de março de 2009

Por que do Lambe?

A prática do lambe segue dois caminhos distintos para justificar a sua existência na arte pós-moderna urbana: um individualista e outra social.

 

O Eu na cidade.

 

O coletivo e particular já se confundem. Até onde vai meu direito e começa o do outro? O que é a democracia e todas essas tendências humanistas? Cotidianamente o dilema de ser livre ou ser o touro castrado.

 

Ver a sua marca, participação, cicatriz, na cidade é sentir-se vivo, ativo, agente de mudança e de poder. É uma busca solitária para sentir que faz parte de algo que lhe escapa, que vai além de seu feudo, num mundo onde a alteridade nos assusta, onde o matrimonio do medo e desejo se evidenciam. A ânsia do excluído por aceitação.

 

A verdade é que nunca quisemos deixar de sair de nossos quartos, então o estendemos para as ruas.

 

O Lambe.

 

Quem é vc imagem que foge das folhas pautadas e invade a cidade, ser transgressor que perturba minha vigília onírica, que trás a mim inquietação e dúvidas? Eres vos a nova cara da arte? Tão medíocre, efêmera na mensagem e na existência.

 

O fato é que arte nunca foi para as massas. Meu significado não é a mentira estampada nos produtos do supermercado, está nas entrelinhas. Peça-me para facilitar a compreensão e escolho me explicar para as amebas.

 

Sou a contracultura da cultura dos contrários. Estou aqui por estar, pois que diferença faria caso outro ocupasse meu lugar? Nada mais faz mesmo muito sentido. Tudo acaba sendo fagocitado e depois ejaculado pelas atividades sociais. Hoje lixo, amanha capa de revista, e no fim nunca deixamos de estar entre os vermes.