sexta-feira, 13 de março de 2009

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Estava num dia ruim. Era dia pré-escrita, e já conseguia sentir o começo daquele gosto amargo subindo pelo esôfago, tão cheio de calos. A cidade era um grande sovaco molhado, quente, seboso. Vi então um café ao longe, porta aberta, escuridão lá dentro. Parecia ser muito mais quente e úmido que o resto da cidade. Remetia a outras partes corporais. E foi com uma risada que coloquei o pé esquerdo (óbvio) lá dentro.

Claro que estava vazio. Vazio, com janelas fechadas em pleno verão infernal. Fiquei em dúvida se realmente estava aberto justo aquele estabelecimento, tão sem sentido. Sorri de novo, percebendo-me ali, muito mais sem nexo do que as paredes que me cercavam. Sentei, masoquista, na única mesa pela qual passavam alguns raios ferventes, pontos e traços alternados na madeira. "Se é pra cair, que seja de cabeça", dizia um amigo meu.

Não havia cardápio, nem garçons. Apenas um gordo careca que volta e meia se confundia com o balcão de madeira abaolada. Limpava levemente uma xícara rachada. "Mãos tão pesadas e parece que tá passando a mão em alguém", pensei.

Iniciou-se uma disputa silenciosa, ele e sua xícara sexual, eu e as miragens encaloradas. Onde os raios beijavam meus braços tremia, e eu derretia em código Morse. Aquela devia ser sua xícara favorita. Depois de um bom tempo de braços ardendo, desisti. O caminho mesa-balcão parecia muito menor de onde eu estava...

- Estão abertos?
- Não, tá muito quente moça.

Fui embora, saliva espessa e suor nas pálpebras. Definitivamente, um dia ruim.

domingo, 1 de março de 2009

Ela é linda

Ela é linda

Um gordo com a cabeça raspada passou lá fora. A porta à minha direita, atrás uma janela. No café o movimento é pulsante. Agora encheu, mas desde que cheguei as mesmas pessoas mantêm suas posições.

Também à direita, um cara escreve num bloquinho. Um bloquinho sendo rabiscado sempre chama atenção. O cara tenta perceber de rabo de olho se eu estou lendo o que escreve. Queria ler. Li umas poucas palavras.

Na minha frente, duas mulheres conversam. Uma mais que a outra. Se eu tentasse, acertaria um tapa na cara da mais falante. Sem me levantar. Conversa chata, o café estava quente demais para tomar.

Há também uma janela à direita, só que mais pra frente, depois da porta. Até meu olhar chegar lá fora, duas moças comem. Não ouço o que falam.

Me propus adivinhar o que conversam através do que o cara escreve. No bloquinho estava escrito: ela é linda.

Hum.

Realmente, a beleza dela já tinha me atraído. Era algo estranho. Tinha cara de periquito. Mas a beleza mesmo estava em outro lugar. Não sei.

A da frente estava de costas, mas pude perceber que descendia de orientais. A pele mais escura talvez empurrasse sua família para o sul da Ásia. O pescoço bem roliço, a bochecha bem redonda. Não vi as mãos. Como pude esquecer das mãos?

Um homem de barba entra. Senta ao balcão. De perfil, seu nariz pontudo cria logo sua beleza. Recebe o café que pediu e toma-o com rapidez. O meu ainda está quente. Fico mexendo e derrubando pelo pires. O homem de barba é bonito à sua maneira, de perfil, assim como a moça, que é linda, possui uma beleza que está em outro lugar.

As mulheres da minha frente, as únicas que consigo ouvir a conversa, falam sobre quais dias da semana uma vai estagiar, qual a outra vai. É tão interessante quanto impressionante como o que se pode fazer é logo aquilo que não nos importa.

O cara à direita olha o quanto já escreveu desde que entrou no café e hesita por um instante. Pensei que se estivesse com um bloquinho naquela hora estaria escrevendo também. Será que não teria beleza alguma como o cara que escrevia? As mulheres também não eram belas, uma nariguda e falante, outra quieta e também com traços orientais, só que mais para o norte.

Alguém estaria vendo a minha beleza? Olhei para todas as pessoas, nenhuma olhava para mim.

O homem de barba saiu.

Voltou em seguida quando as moças pediram um bolo de chocolate com sorvete em cima. E calda de chocolate mais em cima ainda. Havia encontrado duas mulheres na rua e voltou. Teve que pedir outro café.

Pela quinta vez olho todos os quadros do lugar e continuo gostando deles. O café também está bom. São fotografias. Muito boas. Preto sobre o branco com branco sobre o preto. Lembrei das minhas fotos. Vi o homem de barba de frente: não merecia um retrato.

O cara à direita merecia um retrato? De novo, não prestei atenção no detalhe. Vi sua caneta, seu bloquinho, sua letra. A cara? A mão? Cabelo encaracolado.

As moças levantaram-se e ficaram bastante tempo ao balcão antes de pagar a conta. Abri os olhos: seria notado? Procurariam por algo de belo perto da janela da esquerda?

O homem de barba esbarrou com meu olhar e logo seguiu adiante. O cara do bloquinho estava com a cabeça paralela à minha, olhando para o balcão: ela é linda...

A tailandesa me olhou. Mais rápida que o homem de barba. Mal pude ver se sua bochecha direita era simétrica com a esquerda.

Em dois segundos estavam fora do café. Dois olhares as seguiam. O cara fechou o bloquinho. Elas não olharam para trás.

- Percebi que as moças também chamaram a tua atenção.


Ele me olhou um pouco. Procurava minhas intenções. Sabia que eu havia lido seus escritos? Sem dúvida não procurava algo em mim. Nem em outro lugar.

Me levantei, paguei e saí.

Sozinho o mundo público se torna muito privado.

Caminhando no início da noite, me dei conta que não havia sido bonito para nenhuma das quatorze pessoas daquele minúsculo café.


1º de março de 2009

Por que do Lambe?

A prática do lambe segue dois caminhos distintos para justificar a sua existência na arte pós-moderna urbana: um individualista e outra social.

 

O Eu na cidade.

 

O coletivo e particular já se confundem. Até onde vai meu direito e começa o do outro? O que é a democracia e todas essas tendências humanistas? Cotidianamente o dilema de ser livre ou ser o touro castrado.

 

Ver a sua marca, participação, cicatriz, na cidade é sentir-se vivo, ativo, agente de mudança e de poder. É uma busca solitária para sentir que faz parte de algo que lhe escapa, que vai além de seu feudo, num mundo onde a alteridade nos assusta, onde o matrimonio do medo e desejo se evidenciam. A ânsia do excluído por aceitação.

 

A verdade é que nunca quisemos deixar de sair de nossos quartos, então o estendemos para as ruas.

 

O Lambe.

 

Quem é vc imagem que foge das folhas pautadas e invade a cidade, ser transgressor que perturba minha vigília onírica, que trás a mim inquietação e dúvidas? Eres vos a nova cara da arte? Tão medíocre, efêmera na mensagem e na existência.

 

O fato é que arte nunca foi para as massas. Meu significado não é a mentira estampada nos produtos do supermercado, está nas entrelinhas. Peça-me para facilitar a compreensão e escolho me explicar para as amebas.

 

Sou a contracultura da cultura dos contrários. Estou aqui por estar, pois que diferença faria caso outro ocupasse meu lugar? Nada mais faz mesmo muito sentido. Tudo acaba sendo fagocitado e depois ejaculado pelas atividades sociais. Hoje lixo, amanha capa de revista, e no fim nunca deixamos de estar entre os vermes.