domingo, 1 de março de 2009

Ela é linda

Ela é linda

Um gordo com a cabeça raspada passou lá fora. A porta à minha direita, atrás uma janela. No café o movimento é pulsante. Agora encheu, mas desde que cheguei as mesmas pessoas mantêm suas posições.

Também à direita, um cara escreve num bloquinho. Um bloquinho sendo rabiscado sempre chama atenção. O cara tenta perceber de rabo de olho se eu estou lendo o que escreve. Queria ler. Li umas poucas palavras.

Na minha frente, duas mulheres conversam. Uma mais que a outra. Se eu tentasse, acertaria um tapa na cara da mais falante. Sem me levantar. Conversa chata, o café estava quente demais para tomar.

Há também uma janela à direita, só que mais pra frente, depois da porta. Até meu olhar chegar lá fora, duas moças comem. Não ouço o que falam.

Me propus adivinhar o que conversam através do que o cara escreve. No bloquinho estava escrito: ela é linda.

Hum.

Realmente, a beleza dela já tinha me atraído. Era algo estranho. Tinha cara de periquito. Mas a beleza mesmo estava em outro lugar. Não sei.

A da frente estava de costas, mas pude perceber que descendia de orientais. A pele mais escura talvez empurrasse sua família para o sul da Ásia. O pescoço bem roliço, a bochecha bem redonda. Não vi as mãos. Como pude esquecer das mãos?

Um homem de barba entra. Senta ao balcão. De perfil, seu nariz pontudo cria logo sua beleza. Recebe o café que pediu e toma-o com rapidez. O meu ainda está quente. Fico mexendo e derrubando pelo pires. O homem de barba é bonito à sua maneira, de perfil, assim como a moça, que é linda, possui uma beleza que está em outro lugar.

As mulheres da minha frente, as únicas que consigo ouvir a conversa, falam sobre quais dias da semana uma vai estagiar, qual a outra vai. É tão interessante quanto impressionante como o que se pode fazer é logo aquilo que não nos importa.

O cara à direita olha o quanto já escreveu desde que entrou no café e hesita por um instante. Pensei que se estivesse com um bloquinho naquela hora estaria escrevendo também. Será que não teria beleza alguma como o cara que escrevia? As mulheres também não eram belas, uma nariguda e falante, outra quieta e também com traços orientais, só que mais para o norte.

Alguém estaria vendo a minha beleza? Olhei para todas as pessoas, nenhuma olhava para mim.

O homem de barba saiu.

Voltou em seguida quando as moças pediram um bolo de chocolate com sorvete em cima. E calda de chocolate mais em cima ainda. Havia encontrado duas mulheres na rua e voltou. Teve que pedir outro café.

Pela quinta vez olho todos os quadros do lugar e continuo gostando deles. O café também está bom. São fotografias. Muito boas. Preto sobre o branco com branco sobre o preto. Lembrei das minhas fotos. Vi o homem de barba de frente: não merecia um retrato.

O cara à direita merecia um retrato? De novo, não prestei atenção no detalhe. Vi sua caneta, seu bloquinho, sua letra. A cara? A mão? Cabelo encaracolado.

As moças levantaram-se e ficaram bastante tempo ao balcão antes de pagar a conta. Abri os olhos: seria notado? Procurariam por algo de belo perto da janela da esquerda?

O homem de barba esbarrou com meu olhar e logo seguiu adiante. O cara do bloquinho estava com a cabeça paralela à minha, olhando para o balcão: ela é linda...

A tailandesa me olhou. Mais rápida que o homem de barba. Mal pude ver se sua bochecha direita era simétrica com a esquerda.

Em dois segundos estavam fora do café. Dois olhares as seguiam. O cara fechou o bloquinho. Elas não olharam para trás.

- Percebi que as moças também chamaram a tua atenção.


Ele me olhou um pouco. Procurava minhas intenções. Sabia que eu havia lido seus escritos? Sem dúvida não procurava algo em mim. Nem em outro lugar.

Me levantei, paguei e saí.

Sozinho o mundo público se torna muito privado.

Caminhando no início da noite, me dei conta que não havia sido bonito para nenhuma das quatorze pessoas daquele minúsculo café.


1º de março de 2009

3 comentários:

Anônimo disse...

gato siamês é bonito sim.

GBA disse...

Gostei muito. Bem seu estilo. Narrativa simples somado à devaneios provocantes. Os que me prenderam a atenção foram:

"É tão interessante quanto impressionante como o que se pode fazer é logo aquilo que não nos importa."

Essa frase é uma idéia que ainda não foi bem digerida pelos meus pensamentos. Tem mais nela do que posso no momento elaborar.

Outra:
"Sozinho o mundo público se torna muito privado."

Chute no saco. Resume muitas coisas.

Achei legal a forma pela qual o protagonista interage com os outros personagens, bem subjetiva. Todos os personagens são um elemento importante para um Outro que para eles não existe. Subgrupos de uma consciência maior. É como existir em dimensões separadas, onde nosso ser nos escapa por completo e o Outro nos pinta com as cores que tem em sua palheta.

Carol disse...

ótimo! adorei.