terça-feira, 26 de maio de 2009

A transformação de Gregor Samsa

27/08/08


Às vezes, certos “sonhos inquietantes” mudam nossa forma de ver as coisas. Essas “transformações”, causadas por longos descansos, geralmente em nossas camas ou sofás, podem alterar drasticamente nossas relações com os outros e com o mundo a ponto de darmos por si como “um gigantesco inseto”. Esta forma – grotesca em descrição – não nos causa espanto enquanto estamos sozinhos, pois, de certa maneira, ainda somos nós mesmos. Porém, os outros, que construíram uma determinada imagem concreta e dura do que somos, ficam deveras chocados com essa repentina e, a nosso ver, sensata mudança.

Dos textos iniciais de Kafka, a novela A metamorfose, escrita em 1912 e publicada três anos depois, é o momento de transição das histórias curtas para os romances mais maduros. Mas é também um último suspiro de realismo fantástico europeu do século XIX . Ou uma experimentação da semente do realismo mágico de Gógol. O que é importante ressaltar é que a simulação pretendida por Kafka não poderia ser feita de outro jeito.

A transformação do homem em inseto é o acontecimento-motor que tira Gregor de sua rotina. Simbolicamente a metamorfose seria pensamentos subversivos que se tornaram realidade. Uma vontade reincidente de acabar com a angustiante vida de trabalhar para pagar as dívidas da família. Porém, a transformação não o pega de surpresa. Ser um inseto não muda nada para Gregor: a chuva o deixa melancólico, o atraso ao trabalho ainda o preocupa, a primeira coisa que olha, quando busca ao redor pelo “que aconteceu”, é uma foto recortada de revista em cima de mesa.

Diferentemente da personagem de O castelo, que vai se enleando na vida dos habitantes de um condado com certa autonomia, que parece poder abandonar de uma hora para outra toda a confusão, o inseto gigante não pode voltar atrás. Todos nós nascemos num meio geográfico, cultural e econômico e devemos nos adaptar e ceder para conseguir viver. Gregor, porém, tornou-se um estrangeiro nesse meio. Suas tentativas de modificá-lo, como rearranjar constantemente o quarto, seu gueto, até torná-lo vazio, são difíceis e com as pessoas de que depende não consegue se comunicar.

Com esta novela, Kafka experimenta na ficção as conseqüências da decisão extrema de cortar relações com a sociedade. Todos que já perceberam que “isto de levantar cedo estupidifica uma pessoa” cogitaram essa tentativa. E realmente não passa de uma tentativa para Kafka, pois os problemas que a personagem enfrenta não a deixam em paz. Somente a morte poderia trazer um novo estado de equilíbrio e felicidade para os que se relacionavam com o estorvo.

“Há oito dias que está em casa e não houve uma única noite que não ficasse em casa” – atesta o pai de Gregor. Um trabalho assim “tão cansativo” gera insatisfação e oito dias foram suficientes para tomar a decisão. Por mais que “não se sentisse particularmente fresco e ativo” quando acordou, Gregor sabia que quando fosse se desculpar no trabalho “iria ter com o patrão e dir-lhe-ia exatamente o que pensava”.

Entretanto, coragem não tinha, a família dependia dele. Mas, de súbito, sua vontade foi desmascarada e mesmo querendo que as “ilusões” daquela manhã desaparecessem e sabendo que o “melhor seria levantar-se”, a postura premeditada foi transubstanciada: a decisão grotesca estava na sua cara, fora descoberto e teria que arcar com as conseqüências.

Em A janela para a rua, conto de apenas um parágrafo, Kafka mostra a necessidade que mesmo um homem solitário tem de “ver um braço ao qual poderia aferrar-se”. Naquela estranha manhã, também Gregor buscou na janela para a rua um apoio, mas “pouco alívio e coragem lhe trazia”. Tal foi seu pensamento – “Sete horas, já, e um nevoeiro tão denso.” O mundo se fechava para ele.

Passado um tempo, depois da chegada do chefe do escritório a sua casa, a mãe suspeitou que o filho estava doente e manda chamarem o médico. Por sua vez, o pai pediu por um serralheiro para arrombar a porta. A estas medidas positivas, Gregor “sentia-se uma vez mais impelido para o círculo humano”. “Se ficassem horrorizados, a responsabilidade já não era dele e podia ficar quieto.” Depois do seu esforço para abrir a porta, pelo primeiro contato após a transformação, as coisas não se passaram tão simplesmente como imaginava. Ainda não tendo terminado o horror causado pela sua aparição, Gregor foi enxotado de volta para o quarto.

A história então avança esclarecendo a situação material da família e mostrando as tentativas de inclusão de Gregor. A maçã arremessada pelo pai aparece como castigo e aviso e, com ela incrustada no dorso, está preparada a única resolução possível, depois de alguns meses de desentendimentos e “hospitalidade”.

Por fim, a irmã, que se esforçou em tentar compreender-lhe, proclama a sentença – “Não pronunciarei o nome do meu irmão na presença desta criatura, e, portanto, só digo isto: temos que ver-nos livres dela.” Não é possível mais a convivência. Quando a família consegue estabelecer relações normais com o mundo, o inseto gigante, seduzido pela música do violino, interfere novamente e estraga o andamento das novas atividades.

Gregor acaba trancado em seu quarto vazio para morrer. Para a família, era como guardar a idéia de filho-irmão em algum canto da cabeça esperando esquecê-la. Poucas horas após a morte do inseto, saíam todos para passear. Com o espírito livre, fizeram novos planos e repensaram a vida. Podiam, novamente, normalmente, ser felizes.

A simulação de uma pessoa se desvencilhar da sociedade, empreendida por Kafka com A metamorfose, resulta impossível para a sobrevivência. Os acontecimentos nos surpreendem e não temos controle sobre o que nos cerca. Essa tentativa não foi repetida por Kafka em nenhuma de suas obras posteriores. Pelo contrário, as personagens caminham com dificuldade pelas histórias cheias de absurdos, mas nunca se voltam contra a máquina, buscam sempre de dentro uma solução.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Olha a bela flor dobrar serena a
antiga avenida central;
tem pernas, sim, e desliza pelo lamaçal de macadame.
tempos idos, o cimento fez-se o chão de nossos pés (não assim, bem,... diferente);
a bela flor, na lembrança é mais bela.

vê a flor murcha, a regozijar-se com as gotas do orvalho matinal,
de todos os dias (quase).

Sê a bela flor a passear pelos desníveis do meu peito castigado,
E quem sabe não serei mais uma vez um corpo entorpecido,

Vê a flor, que aos olhos é menos bela que na lembrança,
A assobiar notas tal qual um instrumento musical;
Numa noite de luar, ao fundo do meu quintal,
Na plena imensidão das dores cotidianas.

Querida flor.

domingo, 10 de maio de 2009

O último show de rock. Quem chora?

por Paulo Leminski


Choram, naturalmente, quem assistiu a “The Last Waltz” do Scorsese, um documentário da despedida/volta olímpica do conjunto “The Band”, a célebre cozinha do Bob Dylan.

Chora quem tinha 20 anos em 1968 e chegou a sonhar “the dream”.

Chora quem participou/assistiu da Grande Reforma de Costumes do Ocidente que foi revolução, como alguns diziam, pois não alterou as relações de poder nem as da propriedade, mas subverteu tudo o mais: sexo casmento, ética, religião, música, aparência, vestuário, objetivos de vida.

Choram os que vêem que tudo no fundo continua igual ou pior.

Choram os que acreditaram, mesmo por um segundo, na miragem de uma sociedade alternativa e numa contracultura como terceiro caminho e viram o Stablishment transfrmar todas as ilusões em mercadoria, inclusive este filme.

Chora quem imaginou que o rock (trilha sonora da contracultura) era eterno como sua própria juventude.

Chora quem foi para as drogas que nem Jimmy Hendrix.

Chora quem foi para a Índia com os Beatles.

Choram os que viajavam com Janis Joplin enquanto o maior país da Terra trucida em massa o povo vietnamita e sacrifica a fina flor da sua juventude no gangsterismo com dimensões planetárias que foi a guerra no sudeste asiático.

Choram os que acreditavam no lado bom do progresso, do Stablishment, do otimismo.

Choram os que tomaram banho pelados durante os três dias de música e compreensão em Woodstock.

Choram mais os que não puderam estar em Woodstock.

Choram os que no Brasil viveram em país estrangeiro.

Choram os que cultuaram uma deusa benigna chamada Estrada e descobriram a natureza que duzentos anos de ordem burguesa tinham jogado no fundo do quintal.

Choram todos os que na esquizofrenia do lar se preparam para o dia de amanha que a ideologia Hippie tinha abolido.

Choram todos os que aceitaram as conseqüências do “american way of life”, sem ter seus antecedentes.

Chora quem vê, de repente, surgir na tela como num transe hipnótico, nada mais nada menos que Bob Dylan himself, o mesmo Bob Dylan que levou a mais alta poesia aos juke-boxes dos bares mais vagabundos das estradas dos Estados Unidos, na música folk e blues das suas raízes populares do interior, o poeta que John Lennon disse que lhe tinha mostrado que a “letra não precisa ser só papo furado”, aquele de quem Jimmy Hendrix disse que não podia acreditar, quando o ouviu, que as palavras que estava escutando diziam aquilo mesmo, tão alta era a poesia, o mesmo Dylan, fugido de casa, perdido em Nova York, um pouco antes da explosão dos anos 60 que ele ajudou a explodir, o mesmo Dylan que pôs política na letra de música e deflagrou o protesto, o mesmo Dylan que o sistema, que ele tanto combateu e denunciou, “George Jackson”, “Masters of War”, “A Hard Rain is Gonna Fall”, pune agora transformando-o num multimilionário aristocrata da sociedade americana, Dylan, em pessoa.

Choram os branco-negros, os brancos-índio, os branco-ciganos, os homens-mulher, os adultos-criança.

Choram os que sabem que os sentidos são a crítica da razão e que há muito mais sabedoria no prazer do que imaginam os catões(?) da vida.

Choram todos os que viveram uma vida que não era sua.

Choram todos os que acham que os anos 60 mereciam estátua em praça pública por relevantes serviços prestados à espécie humana.

Choram todos os remanescentes de uma primavera que não funcionou.

Choram todos os que, em algum lugar da Califórnia, converteram-se em uma seita oriental, matricularam-se numa academia de artes marciais japonesas ou viram, pela primeira vez, uma revista escandinava de pornografia, estuprando dois milênios de sexo recatado e elidido.

Choram todos os que, por vergonha do Brasil, da sua música caipira com os dentes cariados, da sua língua que é o desterro ocidental do pensamento, das suas afinidades com a África, com a América Latina, com o operário, com a mulher, com o negro e com o poeta, com vergonha, viveram longe daqui, aqui mesmo.

Chora toda esta geração que não conseguiu ser na medida de suas fantasias.

Choram todos os que tiveram o sistema nervoso reprogramado pela eletricidade, os “filhos da flor”, o “gentle people”, os que fazem a mais silenciosa das revoluções, essa mudança para a vida mais sensorial e menos contável, mais promíscua e menos hierárquica, mais anárquica e menos neurótica.

Choram todos os que dançam.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Cuidado com o dado

Há que se ter força para transformar o dado em novidade,
E coragem para abrir mão do dado, quando este lhe favorece;
O dado pelo dado é, sobretudo, uma prisão,
E como uma boa prisão tende a domesticar o fardo,
quando este não é dado.

O dado pode ser pago: em prestações, uma forma de escravizar.
No tipo: eu fico famoso, e você que foi atrás do dado, em parte por que estava dado,
Acabou se transformando num saco, domesticado, e com espírito opaco.

Libertai-vos do dado, e buscai-vos, no intangível, o não dado. Tenha a certeza de não ser dado, e de também não ter dado: que tal uma transformação? Uma revolução! Eis o combustível do espírito livre!




Florianópolis, 13/04/09.

domingo, 3 de maio de 2009


futuro lambe pós-moderno