domingo, 10 de maio de 2009

O último show de rock. Quem chora?

por Paulo Leminski


Choram, naturalmente, quem assistiu a “The Last Waltz” do Scorsese, um documentário da despedida/volta olímpica do conjunto “The Band”, a célebre cozinha do Bob Dylan.

Chora quem tinha 20 anos em 1968 e chegou a sonhar “the dream”.

Chora quem participou/assistiu da Grande Reforma de Costumes do Ocidente que foi revolução, como alguns diziam, pois não alterou as relações de poder nem as da propriedade, mas subverteu tudo o mais: sexo casmento, ética, religião, música, aparência, vestuário, objetivos de vida.

Choram os que vêem que tudo no fundo continua igual ou pior.

Choram os que acreditaram, mesmo por um segundo, na miragem de uma sociedade alternativa e numa contracultura como terceiro caminho e viram o Stablishment transfrmar todas as ilusões em mercadoria, inclusive este filme.

Chora quem imaginou que o rock (trilha sonora da contracultura) era eterno como sua própria juventude.

Chora quem foi para as drogas que nem Jimmy Hendrix.

Chora quem foi para a Índia com os Beatles.

Choram os que viajavam com Janis Joplin enquanto o maior país da Terra trucida em massa o povo vietnamita e sacrifica a fina flor da sua juventude no gangsterismo com dimensões planetárias que foi a guerra no sudeste asiático.

Choram os que acreditavam no lado bom do progresso, do Stablishment, do otimismo.

Choram os que tomaram banho pelados durante os três dias de música e compreensão em Woodstock.

Choram mais os que não puderam estar em Woodstock.

Choram os que no Brasil viveram em país estrangeiro.

Choram os que cultuaram uma deusa benigna chamada Estrada e descobriram a natureza que duzentos anos de ordem burguesa tinham jogado no fundo do quintal.

Choram todos os que na esquizofrenia do lar se preparam para o dia de amanha que a ideologia Hippie tinha abolido.

Choram todos os que aceitaram as conseqüências do “american way of life”, sem ter seus antecedentes.

Chora quem vê, de repente, surgir na tela como num transe hipnótico, nada mais nada menos que Bob Dylan himself, o mesmo Bob Dylan que levou a mais alta poesia aos juke-boxes dos bares mais vagabundos das estradas dos Estados Unidos, na música folk e blues das suas raízes populares do interior, o poeta que John Lennon disse que lhe tinha mostrado que a “letra não precisa ser só papo furado”, aquele de quem Jimmy Hendrix disse que não podia acreditar, quando o ouviu, que as palavras que estava escutando diziam aquilo mesmo, tão alta era a poesia, o mesmo Dylan, fugido de casa, perdido em Nova York, um pouco antes da explosão dos anos 60 que ele ajudou a explodir, o mesmo Dylan que pôs política na letra de música e deflagrou o protesto, o mesmo Dylan que o sistema, que ele tanto combateu e denunciou, “George Jackson”, “Masters of War”, “A Hard Rain is Gonna Fall”, pune agora transformando-o num multimilionário aristocrata da sociedade americana, Dylan, em pessoa.

Choram os branco-negros, os brancos-índio, os branco-ciganos, os homens-mulher, os adultos-criança.

Choram os que sabem que os sentidos são a crítica da razão e que há muito mais sabedoria no prazer do que imaginam os catões(?) da vida.

Choram todos os que viveram uma vida que não era sua.

Choram todos os que acham que os anos 60 mereciam estátua em praça pública por relevantes serviços prestados à espécie humana.

Choram todos os remanescentes de uma primavera que não funcionou.

Choram todos os que, em algum lugar da Califórnia, converteram-se em uma seita oriental, matricularam-se numa academia de artes marciais japonesas ou viram, pela primeira vez, uma revista escandinava de pornografia, estuprando dois milênios de sexo recatado e elidido.

Choram todos os que, por vergonha do Brasil, da sua música caipira com os dentes cariados, da sua língua que é o desterro ocidental do pensamento, das suas afinidades com a África, com a América Latina, com o operário, com a mulher, com o negro e com o poeta, com vergonha, viveram longe daqui, aqui mesmo.

Chora toda esta geração que não conseguiu ser na medida de suas fantasias.

Choram todos os que tiveram o sistema nervoso reprogramado pela eletricidade, os “filhos da flor”, o “gentle people”, os que fazem a mais silenciosa das revoluções, essa mudança para a vida mais sensorial e menos contável, mais promíscua e menos hierárquica, mais anárquica e menos neurótica.

Choram todos os que dançam.

Um comentário:

gil disse...

Esse texto é muito bom, mesmo hoje.